segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Liberdade


Minha mãe sempre me disse que, quando eu e o meu irmão éramos pequenos e saíamos para passar uma noitada com os amigos, ela não entrava no nosso quarto. Ela dizia que não imaginava dor maior do que arrumar o quarto de um filho que já morreu. Que a nossa ausência a perturbava. Mesmo que isso não fosse preocupá-la a essa altura do campeonato, passei a tarde inteira tirando a tralha toda do meu quarto.
Joguei tudo fora, me livrei de tudo. Não quis que ninguém usasse aquele lixo de novo. Assim como meu corpo, as minhas lembranças morreriam naquele dia.
Senti as mãos ossudas de minha loucura envolverem meu pescoço, uma corda de ressentimentos me apertaram a alma, selando-se em um nó posicionado do lado esquerdo de meu pescoço.
Houvera muito tempo para que eu pensasse em quais palavras diria antes de morrer.
Ao vão de quatro paredes apenas o pulsar inquieto de meu coração era ouvido.
Subi em um banco de madeira, e na extremidade da corda contraria à amarrada no meu pescoço, dei um nó cego em uma estrutura metálica no teto. A resistência da estrutura já havia sido devidamente averiguada. Treinei a porra do nó por semanas.
Fechei os olhos, e então, pulei. Senti-me faltar o ar. Expirei cada problema e deixei que um clarão de possibilidades tomasse minha mente.
Ouvia a risada doce de minha falsidade sussurrada ao pé do meu ouvido.
Chacoalhei meu corpo na vã tentativa de afastá-la. Continuei sentindo sua respiração no meu cangote.
Lembrei das últimas palavras. Tanto tempo programando um discurso para mim mesmo. Faltou-me a memória; faltou-me a voz para gritar. Faltou-me o ar. Simplesmente abri a boca e deixei que as palavras se jogassem. Pude vê-las planarem no ar alguns instantes antes de se rebentarem no chão frio de concreto. Podia ver um filete de sangue escorrer das minhas palavras. Ficaram ali, estiradas. E eu fiquei a lhes observar. O tempo parecia ter parado naqueles instantes de falta de ar. Sentia dor.
Senti o corpo pesado de minha insegurança esmagar minhas víceras, tive o rosto espancado pelas minhas mentiras. A desilusão dilacerava minha alma.
É só que eu precisava de uma vitória depois de tantas derrotas. E para mim, finalmente escolher o meu destino era uma vitória. Perder minhas certezas era uma derrota. Perder minhas esperanças era uma derrota. Irônico pensar que para mim perder a minha vida seria uma vitória. Na verdade, perder meu corpo. Havia tempo que eu não estava vivo.
Faltou-me o ar, e eu estava ofegante. Sentia dor. Tive meus olhos abertos pelo meu orgulho. E foi então que eu vi. Vi a liberdade. E ela sorriu para mim. Fechei os olhos novamente.
Foi como adormecer. Sem dor, sem drama.
Sem sonhos. Sem saídas.
Preso e perdido no meu subconciente.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Olhos de Prata


Toquei sua pele fria. Corri com meus dedos sobre sua face. Repousei meu rosto sobre seu peito. Não ouvi pulsar de coração algum. Deixei que corressem as primeiras lágrimas de meus olhos. Gritei meu pranto engalfinhada no conforto do seu corpo. Mergulhei minhas mãos em seus cabelos e a chuva começava a cair sobre minhas costas. Deixei que minhas lágrimas se dissolvessem na água e fechei teus olhos. Você tinha olhos de prata, não olhos de morte. Quis abri-los novamente. Quis sentir o sangue correndo em tuas veias. Desejei ser beijada. Nas mãos, na face, nos lábios. Quis sentir teu toque.
Meu coração se comprimiu em agonia. Te abraçava em eternos segundos de desespero e uma tempestade de sentimentos molhava nossos corpos.
Olhos nos olhos, mesmo estando fechados. Os seus prateados de morte, os meus marejados de dor.
Vejo teu sorriso de lua minguante nas noites escuras e vejo teus olhos de mar prateado a me observar. Mas não sinto mais seu toque. Não me vejo flutuar em alegria ao sentir tuas mãos nas minhas.
No concreto da calçada deixei que escorresse nas minhas lágrimas os meus sorrisos sinceros.
Sussurrei 'adeus' ao pé do teu ouvido e deixei-te partir com os olhos embaçados de cimento e dor.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Corda-bamba de corpos

As palavras se estiravam como corpos sobre um papel, deixando que o menino caminhasse sobre elas.
Ele distribuía as frases e compunha histórias em uma corda-bamba de pensamentos.
O moleque caminhava sobre uma corda-bamba de corpos em direção ao amanhecer.
Caminhava descalço e sentia seus pés esmagarem cada rosto, cada coração, cada vida. Se equilibrava com os braços.
Cheiro de hálito noturno, suor, dor e morte invadiram sua mente.
O céu prateado o fazia lembrar que se caísse, não só estaria morto como completamente sozinho.
Sozinho.
Isso doía nele muito mais do que qualquer queda e do que qualquer anseio.
Era esse sentimento de abandono que corria em cada veia do seu corpo ossudo.
O céu estava prateado e refletia o brilho triste do sol que pouco nascera.
Sozinho.